O sol do meio-dia banhava a cidade. Preso em seu carro, preso no engarrafamento, junto a tantas outras almas voltando ao trabalho depois do horário do almoço, observava os números e as letras das placas dos outros carros dançando através do calor que emergia do chão. Seu ar-condicionado estava quebrado, e se arrependia amargamente por não ter ido à oficina três dias atrás - quando tinha tempo - consertar. Agora sofria as consequências disso experimentando a sensação de estar dentro de um forno. Sentia o suor brotando em pequenas gotas no nariz e na testa, escorrendo sob suas axilas. Temia ficar fedido a suor, a ideia de ser percebido dentro de um ambiente fechado pelo mal cheiro que exalava lhe causava arrepios. "Vão perceber que estou fedendo, que o fedor vem de mim", pensava.
O sinal abriu, alguns carros passaram, se tornou amarelo e depois voltou a ficar vermelho. Ainda demoraria muito para poder sair dali? Seria uma batida mais na frente não permitindo o trânsito fluir mais rápido? Ou seria o calor fazendo o tempo passar mais devagar? Nem o calor, nem o tempo e nem o trânsito passavam. Já havia desistido de achar no rádio alguma estação que lhe agradasse, era como se estivesse fadado a viver cada segundo arrastado daquele engarrafamento em sua plenitude. Pensou na morte e em como era um jeito fácil de resolver todo e qualquer problema: se morresse ali mesmo, jamais teria que suportar mais nenhum engarrafamento, nenhuma reclamação do seu chefe por ter chegado atrasado ou sequer se preocupar se estaria com cheiro de suor ou não.
Lembrou-se das palavras de seu pai: "Faça uma faculdade, se forme, arranje um bom emprego e depois se case". Depois de sua pós-graduação, o máximo que conseguiu foi um emprego razoável, com um salário razoável para manter seu padrão de vida razoável. Até sua esposa era razoável, mas o que mais lhe incomodava no momento era o ar-condicionado quebrado do carro também razoável. Agora ia todos os dias trabalhar para pagar o colégio particular dos filhos (que não estava barato) e poder viajar para Orlando nas férias. E todos os dias que ia trabalhar eram a mesma coisa, o mesmo engarrafamento, o mesmo escritório, o mesmo chefe. De súbito um pensamento lhe causou uma náusea que pareceu sentir em sua alma: estava vivo, existia, e se morrer fosse a solução para todos os problemas, se deixar de estar vivo fosse a solução mais rápida, então os elementos de sua existência se resumiam a tudo isso que tanto lhe causava irritação e desgosto pela própria vida. Sua mão era a extensão do seu ser, do seu corpo, como estar naquele engarrafamento com o ar-condicionado quebrado era uma extensão da sua existência, do conjunto de escolhas que o levaram até ali, até aquele momento.
Sinal verde.
sábado, 7 de junho de 2014
quinta-feira, 29 de maio de 2014
assum preto (homenagem a Bukowski)
há um assum preto
dentro de mim
ele se debate
tenta fugir
e eu o engulo de volta
seus olhos furados
não enxergam
a escuridão da sua gaiola
seu canto triste
não pode ser ouvido
mas ele canta
e seu canto me preenche
já que não pode preencher as ruas
nem os becos
nem os bares
eu o afogo com vinho barato
o sufoco com fumaça
mas ele resiste
ele me odeia
mas eu também o odeio
e como num casamento infeliz
amamos nos odiar
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
dentro de mim
ele se debate
tenta fugir
e eu o engulo de volta
seus olhos furados
não enxergam
a escuridão da sua gaiola
seu canto triste
não pode ser ouvido
mas ele canta
e seu canto me preenche
já que não pode preencher as ruas
nem os becos
nem os bares
eu o afogo com vinho barato
o sufoco com fumaça
mas ele resiste
ele me odeia
mas eu também o odeio
e como num casamento infeliz
amamos nos odiar
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
sábado, 29 de março de 2014
segundos
já não somos os mesmos
de um segundo atrás
a cada segundo acontece uma vida
um beijo
uma paixão
um amor
que mudará quem somos
e em nossa essência
ainda carregamos quem fomos um segundo atrás
e quem seremos no segundo que há de vir
de um segundo atrás
a cada segundo acontece uma vida
um beijo
uma paixão
um amor
que mudará quem somos
e em nossa essência
ainda carregamos quem fomos um segundo atrás
e quem seremos no segundo que há de vir
terça-feira, 25 de março de 2014
Hoje.
Hoy.
Aujourd'hui.
Heute.
Oggi.
Today.
Vandag.
Hodie.
Namuhla.
Heddiw.
Sot.
Símera.
Danas.
Não importa onde.
Aujourd'hui.
Heute.
Oggi.
Today.
Vandag.
Hodie.
Namuhla.
Heddiw.
Sot.
Símera.
Danas.
Não importa onde.
sábado, 15 de março de 2014
Cântico Negro (José Régio)
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
quinta-feira, 13 de março de 2014
ser, sou
sou metade
sou metamorfose
sou parte do mundo
sou o ontem
sou o hoje
sou o amanhã
sou a terra
sou o vento
sou um punhado de versos
invertidos na alma
sou a pena e o papel
a tinta e o tinteiro
sou o que fui fui o que sou
sou o que sou sou o que sou
sou o que serei serei o que sou
sou metamorfose
sou parte do mundo
sou o ontem
sou o hoje
sou o amanhã
sou a terra
sou o vento
sou um punhado de versos
invertidos na alma
sou a pena e o papel
a tinta e o tinteiro
sou o que fui fui o que sou
sou o que sou sou o que sou
sou o que serei serei o que sou
terça-feira, 11 de março de 2014
Capitu, teus olhos.
E de longe eu te observo. E observo teus
olhos de Capitu e observo quando sou observado por ti. Nos olhamos de
longe, cujo o único obstáculo é o vácuo e o silêncio e os teus olhos de
Capitu. E a teus olhos de Capitu penso em me entregar, para que eles me
observem mais de perto, cada poro do meu rosto, cada fio da minha barba.
Quero sentir o gosto dos teus lábios e o gosto do teu pescoço, quero
esculpir uma Vênus na argila da tua carne, modelar com minhas mãos cada
milímetro da tua epiderme enquanto te sussurro mentiras no ouvido em
forma de verso.
Assinar:
Postagens (Atom)